A tragédia no Rio de Janeiro expõe, mais uma vez, o abismo entre Estado e periferia: o único braço do poder público que chega até o povo preto e favelado continua sendo o da repressão.
A presença do Estado nas favelas se resume, há décadas, ao som das balas e ao medo. Este artigo denuncia o fracasso das políticas públicas e a militarização das periferias, mostrando como a PM se tornou o rosto mais cruel da ausência do Estado.
Há décadas, o Rio de Janeiro é o retrato vivo da falência institucional do Estado brasileiro. A cada operação policial, o noticiário se repete como uma ferida aberta: mortes, medo, helicópteros sobrevoando becos, e uma população que, mais uma vez, é tratada como inimiga.
Na tarde de 28 de outubro de 2025, o Estado do Rio de Janeiro deflagrou o que foi anunciado como uma megaoperação policial nos territórios dos complexos do Complexo do Alemão e da Complexo da Penha, mobilizando cerca de 2.500 agentes entre policiais civis e militares. O objetivo formal declarado era capturar lideranças da facção Comando Vermelho e conter sua expansão territorial.
Oficialmente, o balanço divulgado pela Secretaria de Polícia Civil registrou 119 pessoas mortas e 113 detidas, 58 mortes na noite da operação e outras 61 encontradas em área de mata pela manhã de hoje. Em outras publicações, os números informados variam: em alguns relatórios iniciais foram 64 mortes confirmadas. Organizações de direitos humanos e moradores da comunidade estimam que o total possa superar 130 corpos.
É preciso dizer, de imediato, que o modelo de intervenção aqui empregado extrapola por muito o que se convenciona chamar “operação policial”. A escala letal, a localidade, zonas periféricas historicamente vulneráveis, e a ausência pública de garantias processuais visíveis fazem com que a palavra mais adequada seja: chacina. Porque, se o Estado assume para si o uso indiscriminado de força letal contra uma população em território vulnerável, chamamos de chacina aquilo que deveria ser tratado como investigação, prevenção, respeito às garantias sociais, jurídicas e humanas.
É também vital afirmar que o território periférico não é homogêneo quando se trata de crime. As favelas cariocas, e em especial os complexos visados, são formadas por um mosaico de vidas: trabalhadores, mães, pais, jovens, estudantes, microempreendedores, artistas, pessoas que lutam para simplesmente existir. Sim: há também grupos armados, há crime, há territórios de disputa, mas reduzir toda a favela à criminalidade é uma falácia que legitima o massacre. É essa mesma heterogeneidade que exige políticas públicas complexas e não o ataque em massa como se todos fossem inimigos.
Essa operação, ou melhor, esta chacina, reforça um padrão que já denunciavam organizações da sociedade civil: uso da política de segurança pública como política de “letalidade seletiva”, predominantemente voltada a populações negras e periféricas.
Se segurança pública fosse tratada como direito amplo, haveria menos razão para o Estado aparecer só quando chega com armas e tropas. Se segurança pública fosse realmente para todos, ela apareceria com saúde, educação, cultura, emprego, não com morte.
Quando uma comunidade que já convive com ausência de direitos básicos recebe de surpresa centenas de agentes, blindados, drones, fuzis e dezenas de mortos espalhados pelas ruas, mata-mata, o sentido institucional se inverte: aquilo que deveria proteger se torna a ameaça principal. A justificativa de “combate ao crime organizado” não valida a execução sumária de pessoas, a morte de civis não envolvidos, ou corpos abandonados à conta-gotas. E sim: a contagem de mortos distrai da ausência de responsabilização ou investigação transparente.
Os moradores dos complexos relataram cenas de horror: corpos repousados em praça, corpos em matas próximas, silêncio enregelado nas vielas, escolas suspensas, ruas vazias. E mesmo diante da aparente vitória anunciada pelo Estado, “vamos mostrar quem manda”, disse o governador Cláudio Castro, os efeitos práticos sobre a criminalidade são duvidosos. Especialistas lembram que uma ação com esse grau de letalidade pode, na verdade, reforçar os ciclos de violência, recrutar novos combatentes para as facções, gerar trauma coletivo e aprofundar a sensação de abandono institucional.
Diante disso, duas constatações se impõem: primeiro, não basta haver presença estatal no território, é preciso que essa presença seja construída com direitos, escuta, política, comunidade. Segundo, crime não se combate com chacina. Executar em massa, mesmo que dentro de uma narrativa de “guerra”, reforça a ideia de que no território periférico só se age com violência. Mas a verdadeira proteção se mede quando o Estado chega para proteger, não para matar.
Enquanto o único tentáculo do poder público que toca a favela for o braço armado, estaremos diante de falência institucional, não de soluções. O Estado que arma o campo de batalha e deixa corpos no chão renuncia ao seu papel de garantidor de vida e passa a atuar como força de ocupação. A periferia não é terra de exceção. A periferia exige dignidade, acesso, cultura, respeito. E não o som das balas como canto de boas-vindas.
Não aceitaremos a narrativa de que “foi necessário”. Não aceitaremos que números sejam naturalizados. Não aceitaremos que a periferia seja reduzida a alvo. O que ocorreu não cabe no dicionário de “operação bem-sucedida”: cabe, sim, no dicionário da vergonha institucional.
Revoltante e envergonhante o que aconteceu no Rio de Janeiro, o estado mostra mais uma vez que falhou completamente, pois aqueles que deveriam ser defensores sociais agem com violência, é sinal de que precisamos de uma profunda reforma de visão de mundo. Favela não é lugar de guerra e entrar com violência só gera mais violência. O que o Brasil precisa é de transformação social, de presença, diálogo e humanidade não de mais sangue.