Na semana em que a cidade de Blumenau (SC) estampou nas redes sociais um cartaz oferecendo até R$5 mil por informações que levem à identificação de pixadores, um velho Brasil mostra sua face: o da criminalização sistemática da juventude periférica e da repressão à cultura urbana. A peça publicitária, compartilhada com entusiasmo por empresários conservadores e endossada por setores do poder público local, parece saída de uma distopia autoritária — mas é real e reflete o espírito de um tempo que flerta perigosamente com a censura e o vigilantismo.
Com frases em letras garrafais e a promessa de recompensa em dinheiro, o anúncio utiliza a linguagem de “procurados” do faroeste norte-americano, como se estivéssemos lidando com foras da lei perigosos. Mas estamos falando de jovens — em sua maioria negros, pobres e periféricos — que usam as ruas como tela e a pixação como forma de existir, marcar território e denunciar um modelo de cidade excludente.
É fundamental diferenciar a pixação do vandalismo gratuito. A pixação é uma forma de escrita urbana, uma estética própria que, mesmo não autorizada, carrega discurso, protesto e presença. Não é mero rabisco: é uma linguagem, muitas vezes crua e agressiva, porque traduz a agressividade do mundo contra quem a produz.
A proposta da Prefeitura de Blumenau de “endurecer leis contra a pixação” insere-se num contexto mais amplo de criminalização das manifestações culturais que não se enquadram nos padrões da branquitude, do empresariado conservador e da arquitetura higienista. Essa escalada repressiva é alimentada por uma lógica punitivista que prefere investir em câmeras, prisões e delações ao invés de abrir espaços para diálogo, políticas públicas e reconhecimento simbólico da cultura das ruas.
O que está em jogo não é a proteção do patrimônio público ou privado — é a imposição de uma ordem estética e ideológica. A mesma cidade que silencia graffiteiros, retira murais e investe em “limpeza visual”, muitas vezes não oferece oficinas de arte nos bairros, nem acesso à cultura para quem está à margem. Há um projeto de cidade para poucos, onde o “feio” não é o traço do spray, mas o corpo que segura a lata.
A oferta de recompensa, por sua vez, nos remete a tempos sombrios. O incentivo à delação não apenas fere o princípio da convivência democrática como acirra a perseguição a grupos historicamente vulnerabilizados. É um retorno ao espírito da Ditadura Civil-Militar, em que a vigilância e a punição eram práticas cotidianas para manter o status quo.
O que Blumenau e outras cidades de Santa Catarina precisam é de políticas públicas de valorização da juventude urbana, investimento em espaços de arte e diálogo com os coletivos que atuam nas periferias. Precisam compreender que a rua é viva, que a cidade é palimpsesto, e que toda tentativa de silenciar as camadas invisíveis da sociedade produzirá apenas mais revolta, mais conflito, mais tensão.
O retrocesso que vivemos em Santa Catarina não é apenas político, mas simbólico. É o retrocesso da sensibilidade, da escuta, da pluralidade. Transformar pixadores em inimigos públicos enquanto criminosos do colarinho branco seguem impunes é mais do que ironia — é perversidade.
O problema nunca foi a tinta no muro. O problema é o muro que nos divide.